A liturgia da Palavra deste domingo nos oferece uma rica reflexão acerca do reconhecimento da presença de Deus na vida da comunidade. A própria liturgia nos motiva a esta fé viva.
As primeiras comunidades cristãs viveram períodos de muitas turbulências. O saldo da guerra judaico–romana foi desolador e o futuro apresentava-se incerto. Jerusalém tinha sido arrasada no ano 70 e, com ela, o Templo, o sacerdócio e boa parte do mundo conhecido por Jesus e seus discípulos. Era literalmente o “fim do mundo” ou, melhor, de “um mundo”. A esses acontecimentos últimos referem-se os evangelistas nos discursos chamados de “escatológicos” (cf. Mt 24–25; Mc 13; Lc 19,41-44).
A dura realidade gerou angustia e medo e levantavam-se para o povo as incertezas no caminho: Como sobreviver? Ou, dito de outra maneira: Qual era o coração da nossa identidade?
Foi naquele obscuro horizonte que vieram à luz o Evangelho de Marcos (aproximadamente 64-70 dC.) e o Evangelho de Mateus (aproximadamente 75-80 d.C.). Como parte desse povo, abalado e confundido pelos últimos acontecimentos, ambos os evangelistas deverão enfrentar o sofrimento e a perplexidade das comunidades destinatárias de seus Evangelhos.
Nessas circunstâncias, Marcos (contemporâneo da guerra com Roma) levanta uma pergunta básica, crucial: “Quem é Jesus?”. Era preciso, de fato, começar por esclarecer a identidade do Mestre: Jesus é o Cristo, o Filho de Deus (cf. Mc 1,1),o Messias, o Servo Sofredor (cf. Mc 8,31;9,30-32; 10,32-34; Is 52–53) que caminha para Jerusalém seguido de seus discípulos (cf. Mc 10,32).
Uma década depois, quando o Evangelho de Mateus aparece, a pergunta adquire, na comunidade mateana, um foco diferente. Ou, melhor, à pergunta pela identidade de Jesus acrescenta-se outra: “Quem somos nós?”. Não é por acaso que a cena do evangelho de hoje é Jesus e os apóstolos dentro da barca (enfrentando uma tempestade).
A cena do evangelho de hoje (Mt 14, 22-33) é precedida por uma série de conflitos: incompreensão e hostilidade (Mt 12, 1-21/ 22-37), resistência a mensagem do Reino, contada nas parábolas do Reino (Mt 13), a morte de João Batista (Mt 14, 1-12) e uma multidão doente, com fome e oprimida (Mt 14, 13-22).
O texto inicia com Jesus (v. 23) despedindo a multidão, depois de já ter mandado os discípulos irem à frente para outra margem (v.22) e indo orar. É preciso, nesses momentos, silenciar para ouvir o Pai (Shemá) e discernir caminhos diante do que ainda virá.
O mar, no tempo de Jesus, é o lugar do perigo, da morada de um demônio, visto como um grande peixe ou serpente marinha, chamado de Leviatã. A devoção a Nossa Senhora da Boa Viagem tem relação com os perigos do mar. A Igreja pedia aos marinheiros que levassem a imagem de Nossa Senhora e carneiros, os quais deveriam ser despedaçados e atirados ao mar, quando esse estivesse revolto. Desse modo, o monstro, o demônio das águas, ficaria calmo. Para eles, o mar revolto era sinal evidente da presença do Leviatã.
A Igreja (as primeiras comunidades) está na barca em alto mar. Na escuridão da noite, na agitação de um mar turbulento: angústia e medo. O medo tende a paralisar o dinamismo das comunidades e ofuscar a ação do Espirito.
Os “fantasmas” do ódio, da violência, da perseguição, da intolerância, da rejeição…os gatilhos acionados na memória afetiva do povo de Israel e de cada um deles traz ao horizonte o medo do fracasso, da perda de tempo e da morte.
A tempestade era simbolizada pela força imperial que perseguia as comunidades cristãs. Domiciano, o último Imperador, foi um dos mais perversos. A memória da guerra entre judeus e Roma ainda estava bastante presente. As autoridades religiosas perseguiram e mataram Jesus (descrita nos conflitos no evangelho de Mateus) e, agora, os Seus discípulos.
Jesus aparece aos discípulos (uma cristofania comparada à transfiguração e a ressurreição): “Tende confiança, sou eu, não tenhais medo” (Mt 14,27), disse Jesus. O “sou eu” é o nome de Deus que nos liberta da dor e da opressão.
Pedro diz: “Senhor, se és tu mesmo, manda que eu caminhe sobre as águas”. Pedro tem fé ao chamar Jesus de Senhor, mas ela ainda é fraca. Como um filho que ensaia seus primeiros passos, Jesus lhe diz: “Vem!” E estende a Sua mão para o filho.
Como é bom e belo quando alguém estende a mão para ajudar, não é verdade?! Há pais que nunca passaram segurança para os seus filhos enfrentarem os medos nas ondas agitadas da vida! Por vezes, ouvimos historias de pais violentos (com a esposa e com os filhos). Rastros de uma mentalidade patriarcal que não deu certo. Há filhos que choram uma vida inteira a ausência de um pai, um “porto seguro” que nunca tiveram: por vezes são inseguros, violentos, autoritários…
Na antiguidade, o medo estava associado a divindades. Os gregos adoravam Deimos (temor) e Fobos (Medo). Essas divindades estavam associadas e interferiam na vida das pessoas. Segundo a mentalidade devotista, era necessário prestar-lhe culto para obter favores.
Ao longo da história, outros tantos medos aterrorizavam as pessoas: medo de lobos, do mar, de cemitérios, das almas penadas, do diabo, dos torturadores, de autoridades, Quantas vezes ouvimos que alguém tirou sua própria vida possivelmente por medo de algo (uma angustia e culpa) que atormentava sua mente. Não conseguiu superar a situação.
Diante de tantos medos, é fundamental libertar-se deles e não deixar que eles voltem contra nós como um grande fantasma, sobretudo quando o medo é utilizado para o controle (religioso e politico) de pessoas.
Deus está conosco! Ele é sempre um pai disposto a nos dar as mãos nas horas temerosas da vida. Ele não é um fantasma, mas real. Como diz a canção: “segura nas mãos Deus e vai…”
Diante da nossa reflexão, perguntamos: que “fantasmas” e “tempestades” hoje têm colocado medo nas comunidades que buscam defender uma sociedade justa e igualitária, segundo o Projeto de Jesus? A Igreja tem sido uma mão estendida ou um fardo pesado que impõe medo e controle sobre os mais frágeis?
Em nossas famílias (Igreja Doméstica) encontramos espaços para que cada um desenvolva sua personalidade, identidade, vocação, profissão ou vivemos à sombra de fantasma do moralismo, da violência (física/psicológica/patrimonial), da rigidez e do descaso?
“não temas, segue adiante e não olhes para traz”.
Feliz dia dos pais e Boa Semana para todos!
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