segunda-feira, 8 de abril de 2024

Padre Edjamir Sousa Silva: Não há fé sem feridas

 



“A paz esteja convosco!”.  O Ressuscitado está no meio de nós e não importa o tamanho da pedra a ser tirada (cf. Lc 24, 2. Mt 28,2-6.) ou se as portas estão fechadas (cf. Jo 20,19-31.). O fato é que o Senhor está perto de nós em forma de comunhão e participação.

O que o Senhor traz com a sua presença? Paz (shalom). A paz não é um mero aceno ou cumprimento de Jesus, mas anúncio, entrega, profecia. É um presente, um compromisso e um projeto que nós assumimos ao sermos alcançados pelo Senhor Ressuscitado (cf. Jo 14, 27).

O evangelho neste domingo (Jo 20,19-31) traz uma das aparições de Jesus Ressuscitado, aos discípulos, oito dias depois, com a presença de Tomé. Em outras aparições os discípulos até pensavam ver um fantasma (cf. Is 29,4; Mt 14,26; Mc 6, 49). O caso de Tomé envolve uma questão de fé.

São Tomé é chamado de Gêmeo, não sabemos se ele tem um irmão gêmeo, o fato é que ele parece com alguém. Sabe quem? Comigo, com você, com eles, com elas. Certa vez Tomé disse aos seus companheiros: “vamos também nós para morrer com ele” (Jo 11, 16). Ele parece ser muito corajoso, mas tem suas dúvidas e seus medos. TODOS NÓS TEMOS.

As palavras de Jesus não lhe foram suficientes e parece que ele quer mais, Tomé quer tocar em Jesus. Nenhum outro foi a tanto. Talvez Madalena quando quis abraçar o Senhor e Ele disse: “não me retenhas (…)” (Jo 20, 17). Será que Tomé é apenas um incredulidade? Ou será aquela experiência que temos diante de uma linda noticia e que também queremos experimentar: “Se eu não puser os dedos (…)” (Jo 20, 25). Tomé quer experimentar o ressuscitado-crucificado.

Jesus permite que ele avance e convida para que toque Nele (Ibid. 20, 27) e supere a incredulidade para crer. E ele crer. É nesse momento que o primeiro grande anúncio apostólico acontece e vem de Tomé: “meu SENHOR e meu DEUS”. (Ibid, 28). É uma bela profissão de fé. O papa São Gregório Magno declarou: “a incredulidade de Tomé beneficiou mais a nossa fé do que a fé dos discípulos”

A fé também é relação que nasce da fraqueza, da dúvida, da falência de todas as certezas. Durante a quaresma, cantamos com todo o povo: “Também sou teu povo Senhor e estou nesta estrada. Perdoa se, às vezes, não creio em mais nada” (padre Zezinho. O povo de Deus). Reconhecer a fragilidade é uma epifania que leva a tocar as feridas do mundo.

Permitam-me dizer que tenho um respeito profundo com as pessoas que me dizem “estou perdendo a fé”. E quando as escuto percebo que, na verdade, algumas estão refazendo o caminho da fé. Estão abandonando certas ingenuidades para lançarem-se nas águas mais profundas da vida. Acho isso natural, maduro e mais profundo.

Poetas, compositores, filósofos, teólogos, psicólogos, sacerdotes, leigos (as)…que nunca experimentaram e fizeram uma leitura madura de suas dores não foram capazes de crescer como pessoas, compor seus melhores poemas e músicas, influenciar novas ideais, até mesmo uma compreensão mais correta de Deus, etc…

No livro Toque as feridas (2016), do teólogo Tomáš Halík, conta um fato na vida de São Martinho: “Dizem que o próprio satanás apareceu ao santo sob a aparência de Cristo. No entanto, São Martinho não foi enganado. Ele perguntou: ‘Onde estão as tuas feridas?’”

O Domingo da Misericórdia não pode ser celebrado longe das “feridas de Cristo e do mundo”. O mesmo Teólogo Tomáš Halík diz “Não acredito em ‘fé sem feridas’, em uma Igreja sem feridas, em um Deus sem feridas. Somente o Deus ferido através de nossa fé ferida poderia curar o nosso mundo ferido”.  A misericórdia é o compromisso de “tocar as feridas”. Estar longe delas pode significar, como para Tomé, estar longe do Ressuscitado.

A partir de Jesus aprendemos que uma pessoa ferida sabe tocar em outros que estão feridos. A psicanálise e a psicologia ensinam que todos precisamos compreender nossas dores (angustias) e, aprendendo a conviver com elas, estar abertos a cuidar de si e dos outros. UMA PESSOA FERIDA, QUE NÃO SE CUIDA, TEM UM POTENCIAL IMENSO PARA FERIR A OUTROS.

Parece até meio paradoxo, mas no meio eclesial há pessoas que, curadas demais, se tornam pessoas chatas e presunçosas. Por isso, Jesus disse: “os sãos não precisam de médico” (cf. Lc 5, 31-32).

Sábia a atitude de são João Paulo II de instituir a Festa da Misericórdia para toda a Igreja, mas não para que ela ficasse a olhar, devotamente, uma pintura do Ressuscitado, mas que assumisse um estilo de vida: “sejam misericordiosos como meu Pai é misericordioso” (Lc 6, 36-38) e, ainda, “Bem aventurados os misericordiosos por que alcançarão misericórdia” (Mt 5, 7).

O lugar fundamental para viver a misericórdia e o novo “estilo” de vida é a comunidade, por meio da fraternidade, dos vínculos, da amizade, da partilha, da oração, da escuta da Palavra e do pão da Eucaristia. É também na comunidade que podemos partilhar as dores e as feridas que carregamos, bem como ajudar a curar e consolar as chagas de um mundo ferido.

O testemunho da Igreja nascente é de que a luz da ressurreição se realiza no mundo por meio da vida fraterna. Os Atos dos Apóstolos nos ajudam a desenhar o “estilo” novo, que poderia ser sintetizado pela expressão que abre a primeira leitura deste domingo: “tudo entre eles era posto em comum” (Atos 4,32-35).

Gosto de pensar, sonharrezar e colaborar com o que ainda me é possível fazer, para que a Igreja seja um espaço de “curas” diante de um mundo tão hostil. Rezo para que nossas comunidades não se tornem lugares onde abrimos feridas nos outros…

Rezo para que, em nossas famílias e no meio do povo, a misericórdia de Deus não se amesquinhe (apequenar) a uma estampa (esteticismo), quando que deve ser um estilo de vida.

Rendemos graças a Deus por todas as maravilhas que acontecem diariamente, como sinal de fé, em nossas famílias, comunidades eclesiais (igreja) por encontramos pessoas convertidas ao evangelho da misericórdia.

Recordemos que o Ressuscitado está no meio de nós. Seja essa a alegria de nossa vida e a força de nossa caminhada. “A paz esteja convosco!”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O conteúdo do comentário é de inteira responsabilidade do leitor.