A caminhada quaresmal continua e, neste domingo, ouvimos que Jesus passa pela Samaria, na cidade de Sicar (antiga Siquém), lugar onde fora enterrado Josué, o sucessor de Moisés (Jo 4, 5-42). É interessante que Jesus refaz percursos da historia de fé do povo de Israel (desde Abraão) e faz uma releitura de todas as tradições, valores, etc. Ao recapitular todas as coisas e reavaliar todas elas, Ele se coloca como grande interprete das ações do Pai em favor da criação (cf Ef 1, 9-10).
Jesus está em caminhada. E sempre escolheu andar por caminhos proibidos (para os judeus) e fez destes o caminho teológico do Reino. Chega ao local do poço à “sexta hora”, o que corresponde ao meio-dia. É a mesma hora em que vai ser condenado à morte (Jo 19, 14). É o final de uma caminhada, mas abertura de um caminho (cf. Jo 14, 6).
Mais uma vez encontramos Jesus cansado. Senta-se à beira do poço que havia sido do patriarca Jacó. Na tradição judaica, o poço faz memória da água oferecida por Deus ao povo, como a água jorrada da rocha durante o êxodo (na cena há muitos elementos em conexão fazendo paralelos). Depois, vai ser construída a ideia que o poço da água viva será o próprio templo de Jerusalém (cf Ez 47).
Ao sentar-se no poço, Jesus se apropria dessa imagem com toda a sua densidade histórica-teologica-catequética para dizer que Ele é o poço e ao mesmo tempo a água viva que todos buscam. Jesus toma o lugar da Lei, do culto, do templo; pois é Nele, a nova lei, que chegamos ao Pai (não em outras divindades ou lugares de preceitos).
Mais tarde, no alto da Cruz, Jesus, mais uma vez diz que tem sede. Que sede seria esta? Pode ser a sede de Deus/Pai (salmo 42). Pode ser também sede da justiça que está nas bem aventuranças (cf. Mt 5, 6), isto é, de implementar uma nova ordem baseada na justiça e na misericórdia, na fraternidade, na verdade do amor e não mais em um mundo fechado por esquemas morais, politicos e religiosos que não e aproximam do projeto de Deus. Ainda no alto da Cruz contemplamos um coração traspassado pelas nossas durezas (pecados) de onde “saiu sangue e agua” (Jo 19, 34) para saciar a sede de paz e amor entre as pessoas. Esse deve ser o perfil profético das comunidades do evangelho e caminho do discípulo.
A mulher representa o povo samaritano com todas as suas tradições. Seus “cinco maridos” são uma referência aos cinco deuses cultuados pelos antepassados (2Rs 17,29-32). Jesus se apresenta à mulher como verdadeiro amor (longe das idolatrias), autêntico culto e verdadeiro caminho que leva ao Pai.
A iniciativa do diálogo é do próprio Jesus, que pede água. É o Deus da Aliança, que sempre busca seu povo, apesar de suas infidelidades.
Sabemos o quanto a espiritualidade da Lei Mosaica exalta que um judeu seja fiel a ela para ter vida longa, riquezas, e muitos filhos (cf. Salmo 127(128)). Na dinâmica do patriarcado, os homens deviam manter-se longe das mulheres, não podiam conversar com elas em público, ainda que fossem esposa ou filhas. Não é difícil imaginar essa situação quando ainda hoje – tanto no oriente como no ocidente – não foi superado totalmente o modelo misógino usando o nome de Deus em vão. É absurdo ainda hoje ouvir discursos de gurus políticos-religiosos extremamente machistas, usando o nome de Jesus, quando o próprio Filho de Deus abominou isso.
O diálogo entre Jesus e a samaritana faz rupturas com as ideologias de seu tempo. A comunidade do evangelho, como reflexo de seus valores (cf Atos 10, 34s. Tg 2), confere à Mulher (o feminino) um importante lugar.
A fidelidade das mulheres para com Jesus, inclusive até no momento da cruz (Jo 19, 35), testemunha que o discipulado feminino deu muito certo.
O evangelho de Jesus é fonte de água viva que move moinhos e faz avanços significativos, superando o anacronismo de grupos, espiritualidades e moralismos que não dizem nada à fraternidade da vida humana.
Os samaritanos eram considerados inimigos históricos dos judeus. Era um povo de raça mista e possuíam outra concepção religiosa. Para um judeu, ser chamado de “samaritano” era enorme ofensa. A origem dessa hostilidade remonta ao tempo da invasão assíria no Reino do Norte (722 a.C.), quando a cidade de Samaria foi destruída e boa parte da população deportada. A região foi povoada por colonos assírios, que se casaram com hebreus (casamentos mistos). Mais tarde, no período pós-exílio, o sistema religioso do templo de Jerusalém excluiu os samaritanos (em vista de um nacionalismo: a raça pura e eleita).
No contexto desta narrativa também encontramos outra conquista de Jesus: a busca de superação do conflito histórico entre Judeus e Samaritanos (xenofobia). É o Filho de Deus que caminhando entre nós, procura a superação dos conflitos e deseja estabelecer vínculos de paz (cf. Ef. 4,3. Cl 3, 14).
Outra novidade de Jesus que propõe uma mudança de mentalidade com relação ao Criador é de que Deus é Pai de todos, não necessita de um lugar privilegiado para ser cultuado (nem em Samaria, nem no Templo de Jerusalém), mas no coração verdadeiro e sincero. A mudança de mentalidade se amplia com uma nova relação com o próximo, é preciso derrubar barreiras e muros ideológicos que segrega e mata. Todos poderão adorar a Deus já não com rituais fixados pela rigidez legalista, mas “em espírito e verdade”.
Deus não é propriedade de nenhum povo e nem pode ser privatizado por nenhuma instituição religiosa (que são meros instrumentos). Ele é adorado não pelos grandes e presunçosos, mas, entre os pequeninos (cf. Salmo 8), que lhe dão abertura para que o Reino de Deus aconteça.
Do coração de todos os que escutam e seguem Jesus brotam rios de água viva, para saciar qualquer sociedade que não vive a Justiça, a misericórdia e a fraternidade.
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