domingo, 14 de agosto de 2022

Padre Edjamir Sousa Silva: O medo é um afeto político e fonte de servidão

 

A Palavra de Deus neste domingo nos leva a repensar a nossa resposta frente à missão que o Senhor tem nos confiado. Repensar sim, pois a vocação é um dom em movimento (interior e exterior), elaborado e reelaborado na estrada inquietante da vida, mas sempre acompanhado do Jovem Pedagogo de Nazaré (cf. Mt 19, 21).

Jesus está subindo a Jerusalém com os seus discípulos e discípulas, e tem plena consciência deque a meta rumo ao Pai, passa por Jerusalém, a “cidade santa” que mata os profetas e os rejeita (cf.Lc 13,33-34).

Os profetas muitas vezes causam constrangimentos por suas duras denuncias; por isso, é de se estranhar que um profeta diga ou cante que “tudo está bem!” (cf. Jr 6,13-14; Ez 13,8; Mq 3,5).

Quanto mais o Evangelho é anunciado e vivido, mais aparecem as contradições, até dentro da mesma família: pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe.

O evangelista Lucas nos diz que nos caminhos da Galileia Jesus esforçava-se por espalhar o “fogo” que ardia no coração das pessoas: “Vim para incendiar o mundo: e gostaria que já estivesse ardendo!”. (12, 49). “Então um disse ao outro: ‘Não estava ardendo o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho’” (24, 32) e “Então apareceram línguas como de fogo que se repartiram e pousaram sobre cada um dele” (Atos 3, 2). Ninguém imagine que repouso no Espirito seja um tranquilizante para não dar ouvidos as injustiças. Não se engane.

Jesus deseja que o fogo que leva dentro de si: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu; enviou-me para dar a boa-nova aos humildes, curar as feridas da alma, pregar a redenção para os cativos e a liberdade para os que estão presos” (cf. Isaias 61, 1ss/Lc 4, 18ss), contagie a muitos, que nunca se apague e que se “estenda por toda a Terra” (cf Mc 16,15). 
Por isso que, quem se aproxima de Jesus vai descobrindo que o “fogo” que arde no seu interior é o amor pelo Pai e a compaixão por aqueles que sofrem. Essa é a fé a esperança que move o discípulo em busca do Reino de Deus e a sua justiça.

A paixão por Deus e pelos pobres vem de Jesus, está no centro da Sua pregação, é sabedoria do alto…dos humildes…nunca dos grandes, avarentos e mercenários. Uma paixão que só se acende, nos seus seguidores, ao contato com o seu Evangelho e o seu Espírito renovador/Provocador.

 Uma paixão que vai além do convencional. Que tem pouco a ver com a rotina da boa ordem, e a frieza do comportamento normativo: “pensa que eu vim trazer a paz?” (Lc 12, 51-52). Sem este fogo, a vida cristã acaba por extinguir-se, esfria-se a profecia e mergulha as comunidades em meras “labaredas emocionais”: “esfriando minha cabeça e esquentando meu coração” (canção).

O grande pecado dos cristãos será sempre este: deixar que este fogo do evangelho se apague, ou se perca nas ideologias das coisas secundárias e fúteis. Para que serve uma comunidade de cristãos instalados comodamente sem paixão alguma por Deus e sem nenhuma compaixão por aqueles que sofrem?

Jesus caminha pelo mundo revelando a santidade de Deus: destruindo o egoísmo, a injustiça, a opressão que arruínam o mundo a fim de que surja um Mundo Novo (cf. Ap 21, 5), marcado pelo amor, pela fraternidade e pela justiça. 

A paz é dinamismo essencial da esperança messiânica: “Quero ouvir o que o Senhor irá falar: é a paz que ele vai anunciar; a paz para o seu povo e seus amigos, para os que voltam ao Senhor seu coração… A verdade e o amor se encontrarão, a justiça e a paz se abraçarão” (Sl 84/85). O cântico de Zacarias saúda Jesus como aquele que vem “para dirigir os nossos passos, guiando-os no caminho da paz” (Lc 1,79). Mas, se isso é verdade, então por que Jesus diz que não veio trazer paz?

Jesus não está falando da meta da sua ação, mas faz referência às reações das pessoas e grupos à Sua Pessoa e à Sua proposta. Ele veio trazer a paz, mas uma paz que é vida plena para todos, vivida na solidariedade.

A paz do Reino de Deus, aquela que os discípulos buscam com fome e sede (cf Mt 5, 6/ Jo 4, 14. 6, 51), não pode ser sustentada com jogos conivência, ou medo de incomodar e nada transforma. A paz de Jesus é uma “paz inquieta” (https://www.youtube.com/watch?v=suNz7lf6nDg) e os Seus discípulos não precisam ter medo dela (cf. Lc 5, 10).

O filósofo Vladimir Safatle (comentando Hobbes e Spinoza) aprofunda o significado do medo de forma muito interessante. Para ele o medo é um afeto politico e “fonte de servidão politica que origina, conserva e alimenta a superstição (…) para impedir o exercício do desejo e da potencia de cada um como direito natural” (SAFATLE. V.“O circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do individuo” 2ª ed. Belo Horizonte. Autêntica, 2019. p. 101) que autocratas, narcisistas e tiranos introjetam nos pequenos e humildes tentando impor suas ideologias repressivas para cercear a liberdade e os direitos de uma sociedade evangelicamente democrática. Estes não semeiam a paz de Jesus, mas o ódio que destroe e mata.

Em Jesus, a Palavra do Senhor não é catequese das ideologias de conservação para manter sistemas intactos ou pactuar com uma paz que não questiona a opressão (cf. Is 32, 17). A Palavra de Deus proclamada em nossos altares, deve incendiar o mundo (família/sociedade/escola/politica/igrejas…), colocar em causa tudo aquilo oprime e escraviza a pessoa e a vida.

Portanto, o caminho da fé cristã não é um passeio fácil e descomprometido, mas um percurso duro e difícil, que não faz concessões em nome de uma paz falsa. O profeta quase sempre passa por muitas provações para levar adiante sua missão, (Jr 38,4-6.8-10). Isso ocorre porque eles tendem a perturbar a falsa paz que esconde as injustiças e contradições de seu tempo.

O medo e a sensação de desamparo são afetos que circulam, por vezes, no coração dos filhos de Deus (dentro das estruturas de poder), mas o Senhor alimenta a esperança dos seus filhos contra um mundo paranoico (em sociedades totalitárias): “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos.” (Mt 28,20).

Paraibaonline

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